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Esse seria o aspecto real dessa "misteriosa" criatura... |
Quando saiu o primeiro estudo científico dedicado à espécie, em 1966, o fóssil já tinha ganho o nome de “Monstro de Tully”, inspirado no apelido de Francis Tully. Mas o artigo, publicado na revista Science, não arriscou a colocá-lo num dos grandes grupos do reino animal, como os moluscos, os artrópodes e os vertebrados, devido à sua estranheza. Nas décadas seguintes, cientistas especularam que a espécie teria sido um representante de um novo grupo animal, inexistente nos dias de hoje. Outros argumentaram que pertencia aos moluscos. E o ser foi ainda comparado com os poliquetas, um grupo de invertebrados.
Mas agora, um extenso trabalho de investigação que analisou 1200 fósseis diferentes de Monstros de Tully vem mostrar que estes animais eram, na verdade, primos das lampreias. Eram vertebrados tal como as lampreias, os outros peixes e toda a sua descendência evolutiva até aos humanos, de acordo com um estudo publicado nesta quinta-feira na revista Nature.
“É fascinante como um animal assim tão recente (em termos evolutivos), com tantos espécimes (fossilizados) e com uma morfologia tão distintiva se tenha mantido desconhecido durante tanto tempo”, admite ao PÚBLICO Victoria McCoy, do Departamento da Geologia e Geofísica da Universidade de Yale, em Connecticut (EUA), e uma das autoras do artigo da Nature. “O Monstro de Tully tem 300 milhões de anos, a maioria dos fósseis (descobertos) que ainda não foi identificada (é de espécies) com 500 milhões de anos.”
Estes animais tinham cerca de 30 centímetros de comprimento e um corpo alongado que terminava em duas barbatanas. Lateralmente, no tronco do animal, pequenos furos denunciavam a existência de brânquias que lhes permitiam respirar na água. Mas as características mais bizarras eram os olhos e a boca.
Cada um dos dois olhos situava-se na extremidade de uma estrutura que se parece com uma vareta. As “varetas” nasciam na zona central do dorso do animal e cada uma projetava-se para um dos lados do corpo. Os cientistas pensam que estas “varetas” com os olhos na extremidade tinham mobilidade, permitindo ao animal ver para a frente e para trás, desviando-se de possíveis predadores e identificando presas.
Finalmente, a boca parecia-se com uma pinça de uma lagosta com dentes. Além disso, era a parte terminal de uma longa e fina probóscide que nascia do tronco e tinha um terço do comprimento do animal. Um espécime com 30 centímetros teria dez centímetros de probóscide e boca. A probóscide tinha três articulações, uma na base, outra no meio da probóscide e a terceira junto à boca.
Com este aspecto, o Monstro de Tully estaria completamente enquadrado no meio dos seres que povoam o filme de animação "Monstros S/A". O seu aspecto bizarro tornou-o famoso, e em 1989 passou a ser o fóssil de Illinois. Além disso, surgiram teorias mirabolantes. O jornalista inglês Frederick William Holiday, que se tornou um defensor do fenÔmeno fantasioso do monstro do Lago Ness, formulou uma teoria que liga o ser que supostamente habitava o lago da Escócia e o Monstro de Tully.
A equipe de investigadores tirou fotografias aos milhares de fósseis do estudo e obteve imagens de microscopia eletrônica e de raios X, usando outras técnicas. Esta informação permitiu não só fazer medições da anatomia dos fósseis dos animais, mas também identificar estruturas diferentes. Durante o processo de fossilização, “os diferentes tecidos podem ser preservados por diferentes minerais, por isso, ao olhar para os elementos químicos de cada aspecto morfológico, é possível perceber o que era o tecido original”, explica Victoria McCoy.
Foi assim que os investigadores fizeram a ligação entre o Monstro de Tully e as lampreias. Estes peixes, conhecidos pela sua forma delgada e a sua boca redonda com dentes em espiral, pertencem a uma linhagem evolutiva muito antiga de vertebrados, com mais de 400 milhões de anos. Por isso, têm características ancestrais diferentes dos vertebrados que evoluíram posteriormente.
Um exemplo é a corda dorsal, um tubo que se forma no desenvolvimento embrionário humano e no dos outros vertebrados, mas que acaba por fazer parte só dos discos intervertebrais na coluna vertebral. Ao contrário de nós, as lampreias mantêm a corda dorsal após o nascimento e não têm coluna vertebral; em vez disso, têm uma série de estruturas cartilagíneas ao longo do corpo que lhes dá sustentação.
As imagens obtidas dos fósseis do Monstro de Tully permitiram identificar também uma corda dorsal e as mesmas estruturas de cartilagem repetidas ao longo dos segmentos do animal. Há mais. “Por exemplo, descobrimos que os dentes do Monstro de Tully são feitos provavelmente de queratina”, explica Victoria McCoy, tal como os dentes das lampreias.
Além disso, a investigação permitiu tirar a limpo qual a função da boca. No passado, cientistas defenderam que aquelas “pinças” com dentes serviam para agarrar as presas e as colocar noutro orifício que seria a boca. Agora, o estudo concluiu que o orifício das “pinças” era a verdadeira entrada para o sistema digestivo, ou seja, a boca.
Assim, a equipe colocou o Monstro de Tully no mesmo grupo das lampreias, dentro da árvore evolutiva dos vertebrados. “Isto realmente altera o que sabemos sobre a família das lampreias. Todas as lampreias modernas são semelhantes entre si, e muito diferentes do Monstro de Tully. Por isso, o Monstro de Tully diz-nos que as espécies de lampreias de hoje são apenas o que resta de um grupo que, em tempos, foi muito maior e mais diverso.”
Mas olhando hoje para estes animais, 300 milhões de anos após terem prosperado nas águas do Período Carbonífero (penúltimo período da Era Paleozoica), pode-se cair no erro de fazer a interpretação inversa. Por ser tão distante do que conhecemos, o Monstro de Tully parece uma entidade aberrante, uma tentativa falhada da evolução, um ser destinado a extinguir-se. Victoria McCoy desfaz este preconceito: “Eram diferentes dos animais que observamos hoje. Isso não quer dizer que fossem intrinsecamente estranhos, ou monstruosos, ou mal sucedidos. Apenas prosperavam numa altura diferente e de uma forma diferente do que estamos familiarizados.”